terça-feira, 15 de janeiro de 2013

ACORDO? QUE ACORDO?


UM “ACORDO”
CADA VEZ MAIS
“CORRUTO”

Há boas e más maneiras de começar o ano.
Entre as boas, conta-se a reabilitação das tradicionais Janeiras, que José Barros e os Navegante levaram ao Olga Cadaval, em Sintra, na véspera do Dia de Reis. Uma festa com temas tradicionais de Trás-os-Montes, Alentejo, Beira Baixa e Algarve, onde não faltou, no exterior, fogueira e prova de queimada galega, herança medieval de aguardente a arder (sim, com fogo mesmo). Quem assistiu aplaudiu com razão.
Porque a memória de Portugal teve, ali, nota alta.
Entre as más, está a renitência em reconhecer o desconchavo do acordo ortográfico (AO). No início do ano, um jornal que até aqui (e bem) não o aplicava, o Correio da Manhã (CM), cedeu. O pior está menos na cedência do que na argumentação. “A nossa prioridade”, escreveram dias antes, “é tornar a comunicação mais fácil”. Mas onde a trapalhada se insinua é quando, para garantir a tal “comunicação fácil”, o CM escreve isto: “Nesse sentido, nas palavras que admitem dupla grafia, optámos por manter tal como na ‘escrita antiga’ [sic].” Ah, e escreverão “pára” e não “para”, no verbo parar.
Querem ver a lista? É uma delícia. Escreverão, de futuro, ceptro e não cetro, amígdala e não amídala, espectador e não espetador; mas escolhem (porque a moderna “ortografia” é mesmo a la carte)
carateres em vez de caracteres, receção em vez de recepção, setor em vez de sector, conceção em vez de concepção, cato em vez de cacto. Grafia antiga?
Fantástico. Mais fantástico ainda é confundir-se “duplas grafias” (mesmo a la carte) com grafias de uso corrente em Portugal e no Brasil há décadas.
Ou seja, o CM orgulha-se (para garantir a tal “comunicação fácil”)de escrever omnipotente, indemnizar, facto, subtil, sumptuoso, súbdito, académico, topónimo e não onipotente, indenizar, fato, sutil, suntuoso, súdito, acadêmico, topônimo, quando tais variantes não têm escolha possível. Por que motivo escreveríamosAntônio ou bebê se em Portugal dizemos António e bebé? Ou sutil, se dizemos e escrevemos subtil? Será isto uma “escolha”? Não, não é. Mas o mais inacreditável é o CM dizer que escreverá aritmética e não arimética, corrupto e não corruto, fêmea e não fémea, dicção e não dição.
Vamos por partes: no Brasil, apesar de alguns livrecos “modernos” consignarem tais “variantes”, diz-se e escreve-se aritmética e corrupto. Com t e p.
Quanto a “dição”, existe na verdade, mas não tem nada a ver com dicção. Significa “domínio, autoridade”, enquanto dicção é o acto ou maneira de dizer ou de pronunciar. Já “fémea” só pode ser puro delírio de quem não sabe o que escreve.
A confusão entende-se.
O acordo é que não se entende. Quem anda por aí a brincar ao “acordês” julga que basta tirar umas consoantes para respeitar o acordo (o dição versus dicção deve provir dessa ideia peregrina). Ora, como prova um interessante documento entregue esta semana ao ministro Nuno Crato (o estudo é de Rui Manuel Ventura Duarte e um grupo de especialistas e a carta é subscrita por quase duzentas
pessoas), nem mesmo os defensores do AO se entendem. Uma análise comparativa de várias dezenas de palavras em dicionários, vocabulários e no próprio AO mostra que a confusão é generalizada.
O que nuns é imperativo noutros é facultativo, onde nuns há norma única, noutros há grafias duplas, onde uns assinalam PT e BR no uso das variantes (o que é correctíssimo, até porque identifica o uso real das grafias), outros ignoram tal distinção. Erros, falsidades, invenções, há de tudo um pouco para quem queira dar-se ao trabalho de conferir (http://fr.scribd.com/doc/119430003/Carta-a-Min-Educ-Nova).
Nem de propósito: esta semana também o PCP viu aprovada na Comissão de Cultura (e por unanimidade!) uma proposta sua no sentido de criar uma comissão para acompanhar a aplicação do AO,
porque “o debate não está terminado e a utilização da grafia resultante do Acordo tem gerado inúmeros discensos entre a comunidade”. E a Sociedade Portuguesa de Autores emitiu um comunicado dizendo que “continuará a utilizar a norma ortográfica antiga nos seus documentos e na comunicação com o exterior, uma vez que o Conselho de Administração considera que este assunto não foi convenientemente resolvido e está longe de estar esclarecido”. Acordo, disseram? Se existe, está cada vez mais “corruto”.
NUNO PACHECO

EM PÚBLICO 13-01-2013

Sem comentários: